sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Carta ao Nuno


Se estou aqui a teclar com este alter ego virtual, é porque deixei de poder falar contigo. Há quase quatro semanas que acabámos, como se diz na gíria.

Foram três anos que ali,  de um comum acordo, acabaram. Chegámos à conclusão que esta relação, nos moldes em que vinha funcionando, já não se justificava.

Da minha parte, vinha-me queixando da tua crescente indisponibilidade. Não bastava passares doze horas por dia no teu estúdio; passares pelo menos um em cada dois fins-de-semana a trabalhar; quando estavas por casa, preferires ler, pesquisar e escrever a momentos de simples partilha; e agora para o fim, se acaso fossemos à praia,  abrias o primeiro livro que te viesse parar às mãos e largava-lo na hora da partida... Era notória essa tua pouca vontade de fruir de mim.

Causa ou consequência disso tudo,  confessei-te ter tido umas aventuras recentes. Pedi-te que tentássemos repovoar o espaço do nós. Pedi-te esforço: E pedi-te isso, ao que parece, demasiadas vezes. Não me arrependo de o ter feito, porque não faz sentido para mim uma relação resumir-se à partilha de meiguices piegas e de bocejos. Haja tesão; curiosidade; palavra; vontades; surpresas...  Haja vida, porra!

Mas não, em vez dos tais esforços, sentiste-te acossado; sentiste que te estava a pedir um tempo que preferias dar ao teu trabalho; ao teu projecto; à tua posteridade; sim, porque estava visto que a minha posteridade estava no lodo: estava visto que o Henrique não era, a bem dizer, bankable. É pena, o rapaz até que poderia se um bom partido, mas basta de três anos a partilhar a vida de um precário. Há que limpar o carma. Ala, daqui para fora...

... No dia de hoje – dia em que ao termo de quase quatro semanas, vieste recuperar os sacos com as tuas coisas que tive ontem que arrumar por ti – olho para trás e sinto-me sinceramente triste. Muito salgado por dentro mas sem saudades desse passado.

És um pessoa especial. E talvez pela primeira vez, sinto uma tristeza que tem que ver com a pessoa que perdi mais do que com uma qualquer questão de ego (embora possa aqui parecer o contrário). Sei hoje que te amei. Quiçá demasiado. Penso hoje que não querias tanto de mim. Preferias menos emoção; menos intensidade; menos exigências. E eu inversamente queria mais de ti: mais tempo; mais vontade, mais prazer... E se queres saber, é aí que se instala a minha maior frustração. É o achar que este desencontro não era inevitável. É eu achar que se tal como eu que fui beber à tua fonte, e cresci com isso, também tu poderias, se o tivesses querido, ter crescido com a minha diferença.

... No dia de hoje, sei que não te quero rever mais. Estou magoado. Essa tua psicologia positiva: querer é poder; o sucesso atrai o sucesso; o tu veres em mim uma forma de precariedade; um empecilho para os teus sonhos; um retórico lírico; um loser; o nunca me teres deixado ser-te útil com medo que eu te pedisse ajuda em troca... Tudo isso, faz com que pudesse com facilidade sair daqui muito debilitado do peito. E sim, estou de peito rachado, mas de peito inteiro; tal como inteira se mantem a minha visão da vida a dois...

... No dia de hoje, sei que há uma diferença entre gostar de alguém e gostar da vida com essa pessoa. Gostei de ti mas não gostei da vida ao teu lado. Olhando para frente, quero deixar de me sentir chato por gostar de discutir o sexo dos anjos; deixar de pedinchar tempo e atenção; quero ver nos olhos de quem adormece comigo, vontades comuns; no fundo, pela primeira vez, dou hoje por mim a aspirar - num futuro tudo menos próximo – por alguém mais parecido comigo. Alguém que, entre outras coisas, partilhe a minha curiosidade.  

Foi estranha esta relação: noutros tempos fui eu a ave rara sequiosa de mais liberdade; desta vez, saio destes três anos em modos de gaiola vazia... 

Foste-te embora, com roupa para os próximos dias; deixaste par trás cacos de um passado tornado inútil; uma gatinha que trouxeste para aqui...

... Não me apetece epilogar. Nem vou, para arredondar seja o que for, pintar aqui um lindo quadro de pôr do sol como auspício de um futuro glorioso. Hoje é um dia salgado para mim. Estou triste. E quero deixar de o estar.


Em modos de aparte


Pois é, do primeiro ao texto anterior, pode se dizer que há aqui um discurso meio contraditório: Mas aproveito para abrir aqui o seguinte parêntesis... 

Até há uns seis meses atrás fui semanalmente partilhando as reflexões de uma amiga algo perdida ao termo de sete anos de tese de doutoramento de filosofia... Revelou-se uma experiência muito estruturante. De todas as ideias que fomos cozinhando em modos de brain storming, percebi mais do que nunca que o processo criativo alimenta-se da dúvida e da insegurança.  Atulhada de leituras e referências, a escassas semanas do prazo acordado para concluir – já fora de prazo – a sua tese, a Erinç ainda não fazia a menor ideia de qual iria ser o desenlace de tanta pesquisa.  No entanto, lá conseguiu – com persistência, sentido de missão e honestidade intelectual – ir somando uma a uma as peças, recusando qualquer atalho ou “assemblage” preexistente. E sabem que mais, a coisa, por um estranho milagre resultou... Ao final, lendo aquilo de uma só vez, parecia que aquele era o único rumo possível. Que aquela tese tinha nascido para aquela conclusão...

Claro está que depois de a vender como um todo coerente e fluído, a Erinç guardou para ela a verdadeira substância daqueles sete anos de dúvida e esforço.

Tudo isto, para dizer o quê?

A vida tal como o ser humano é um composto, por vezes, muito caótico. Pelo menos a minha vida e a minha pessoa. Há dias em que quero uma coisa para querer o seu contrário no dia seguinte.  Ainda há dois dias vendia a alma para poder estar a sós, hoje já vendo a mesma para sentir intimidade de peito.  Se coerência houver, ela só pode ser decifrada numa perspectiva de conjunto.

Tudo isto para dizer o quê?

Para dizer que a existência desta pequena gruta, só faz sentido se eu me autorizar a ser aqui totalmente sincero. Não quero temer nem a sinceridade nem a incoerência. Deixo ao tempo a estranha magia de pôr em perspectiva e dar sentido a este aqui e agora.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Egoísmo


Regressei a casa após uma temporada imposta.  Na verdade, só me apetecia casulo, intimidade, fechar-me, não ter de explicar nada a ninguém: nem porque sim nem porque não. Estar e fazer, era o que me apetecia.

Nisso chegaste tu: minha amiga de sempre. Era suposto ser um prazer ter-te por perto.  Era suposto termos o prazer de falarmos; partilharmos; criarmos memórias futuras... E isso lá foi acontecendo. Mas tirado a ferros e a que preço. Já não estávamos juntos há um ano e sei que tu tens o prazer e o hábito de abrir as portas de casa; abrir o peito; partilhar o tempo livre; para não falar de um quotidiano feito de dádivas constantes: do teu pai ao teu filho. E digo-te, com toda a sinceridade: admiro-te. Admiro essa tua alteridade, essa tua generosidade e essa tua necessidade de partilha para dares sentido a esta travessia do tempo.

Admiro mas eu não sou assim. Noto que não sou só eu; noto que os meus conterrâneos da cidade partilham comigo essa cultura da gaveta e do casulo.  E sei que Lisboa é nesse sentido um capital de província porque quanto maior a cidade em que tu vives mais planeado é o teu quotidiano e mais o estar espontaneamente com amigos e afins passa a ser visto como a usurpação de um espaço de liberdade e improviso.

Mas repito: eu não sou assim. E sinto-me mal por não ser assim porque gosto de ti. Gosto de ti hoje: da pessoa que és; gosto da pessoa que foste; gosto da nossa  amizade, mas o eu não ser assim significa que não partilho tamanha necessidade de me fundir intimamente naqueles que amo  Sei teoricamente que deveria fazer um esforço e ir beber à tua fonte. Já há muitos anos que o sei e já há muitos anos que coloco o “aprende a dar-te mais” no topo das boas resoluções da rentrée.

Mas do saber ao fazer vai uma pequena distância. E essa distância sou eu. Neste como noutros campos.

E isso coloca-me face a uma série de dilemas. Um deles é o eu não me autorizar a dizer que não: Não, Catarina, não me venhas visitar. Apetece-me estar só. Neste momento não saberei ser bom amigo além de que preciso de algum espaço... Esta frase é aliás um dos ex libris com que fiquei recordado no seio de um grupo de amigos. Preciso do meu espaço.... Faz me sorrir recordar esta frase e os sucessivos contextos em que a fui repetindo.

E aqui estou eu, de novo, a precisar do meu espaço.

Podes me perguntar para quê tanto espaço: e sei que na verdade a resposta mais cedo ou mais tarde implicará nomes de pessoas. Por isso essa teoria tem os seus limites. Mas também te posso dizer que depois do café que bebemos ali no jardim antes do abraço da despedida, vim para casa, e comecei até agora a encher sacos. Fui ali depositar ao ecoponto azul seguramente uma boa dúzia de Expressos. Peguei em canecas, electrodomésticos, roupas, livros e enfiei tudo em sacos: os sacos foram para caixas e as caixas estão aqui, ao meu lado á espera de serem levadas para fora daqui ao final do dia.

Também lavei roupa, desfiz a cama; pus tudo a lavar; mas mantive as cortinas fechadas; o telefone tocou e não atendi; o homem do gás tocou à campainha e não abri... Estava mesmo a precisar disto, catano... Estava mesmo a precisar de drenar algo: e fazê-lo sozinho: e ainda vou precisar de muitos mais momentos desses.  

Quase que poderia intitular este desabafo de as coisas que nunca te disse. Fica a dúvida se alguma vez as saberei dizer ou se devo sequer fazê-lo. Quiçá deva aprender a domar algum egoísmo  e aprender a sair deste “mundinho” do eu: eu as minhas coisas; os meus tarecos; os meus medos; os meus projectos, as minhas necessidades....  Em que raio de bicho me estarei eu a tornar, afinal?


terça-feira, 28 de agosto de 2012

A opinião


Eu acho, eu penso, eu sinto... Estas são para mim expressões demasiado presentes no fraseado de rua. Citando a Hannah Arendt, trocámos a capacidade de reflectir pela necessidade de opinar.  É bom ter uma opinião, mas perguntemo-nos: quem é que está interessado em conhecer a nossa opinião?

No meu caso, posso dizê-lo, pouca gente.

Mas também devo reconhecer que a minha necessidade de "hiperopinar" resulta mais de uma necessidade pessoal de carimbar aquela realidade ou momento do que de o achar que aquela pessoa precisa mesmo da minha magna opinião. É a minha forma de estar, de viver e sentir. Custa-me observar e não parir uma opiniãozita. Quando dou por mim, pimba: já foi.

Mas o que me tem levado a questionar essa tendência, passa pela minha reacção face à opinião alheia. Devo confessar que me “insuportam” pessoas com opinião sobre tudo.  É como aquela tendência de mal acabaste a primeira frase do teu desabafo e lá tá ele com um eu sei o que tu queres dizer, eu também blablabla...

Ser-te-á assim tão difícil fechar essa maldita matraca. Que me interessa o teu eu também blablabla... Deixa-me respirar pela boca e não usurpes este meu espaço de afirmação. É que eu também preciso de blablatar... Não há dúvida de que nos faltam espaços de escuta. Espaços de ser, isentos de carimbadela alheia.

É como se a boca se tornara uma espécie de tubo de escape.  É preciso fazer barulho; é preciso esvaziarmo-nos de algo que inquieta a mente lá dentro. 

É aliás por isso que eu aqui estou na minha gruta netiana. A ver se faço aqui a minha higiene retórica e deixo com isso de fazer do outro o meu penico.

... Este é um desabafo: Tê-lo-ão percebido.

Estou basicamente grávido de palavras com as quais não sei que fazer. 

Acho que vou mas é meditar a ver se acalmo a mente e dou descanso à matraca. 

domingo, 26 de agosto de 2012

O Caderno em branco


Se no meu intróito, partilhei que as muralhas de livros me protegiam de algo e transmitiam o conforto da permanência, devo aqui acrescentar que tenho um fetiche por cadernos:  o caderno de capa rija sem linhas e o lápis: arma letal mas reversível.

Acho que o meu apego ao caderno tem que ver com o meu gosto da página em branco: agrada-me ter debaixo do braço o dito caderno aquando as minhas deambulações de fim de tarde; transforma uma simples saída numa caça misteriosa ao pormenor; mas esta página que regressa com frequência tão branca quanto partiu, não deixa também de ser a metáfora de alguma inacção.

Da mesma forma como alguns acham que a juventude se pauta por um mundo de ideais que se evaporam na prática adulta, eu acho que temo beijar o sapo e lidar com a falta de metamorfose; de certa forma é como se manter as coisas no plano das ideias e dos desejos, lhes mantivesse o brilho de um amanhã diferente; um amanhã em que tudo é possível; sem concessões à finitude dos recursos que fazem de mim um simples homem.

Assim, aos 38 anos, continuo sem reais certezas: nem do que sou; nem do que quero; tanto me imagino jornalista como empreendedor; tanto com um barbudão como uma musa salgada... E se tudo isso permite alguma frescura no pensamento por recusar estatutos e molduras, não deixa de se traduzir numa página branca frustrante.

Porque, no entretanto, os anos passam; os actos assumem-se e sedimentam-se; e o ideais mantêm-se feitos estrelas observadoras da nossa pequenez. E devo dizê-lo, estou a ser resgatado pelo meu próprio jogo. De repente, essa imagem lírica de um bem-falante bem-pensante em margem do mundo tornou-se insuportável. Dou por mim a imaginar-me em homem do campo; homem prático que forja a substância das suas palavras em acções quotidianas... talvez essa seja uma reacção extrema a outro extremo.

Isso, para não falar de outro aspecto que dói: o do dinheiro: por força de tão parco investimento real nas acções de um quotidiano, deixei-me deslizar para uma certa precariedade romântica. Vivo com pouco dinheiro. E se, até certo ponto,  esta é uma boa escola também é certo que faz da minha vida uma espécie de prisão domiciliária.

Quero, por isso, saltar a pés juntos para algo de novo. Quero, preencher as páginas da agenda sem temer a simples ideia do compromisso; quero ir rabiscando por aqui e pelo meu caderno vagabundo algumas ideias. É aliás estranho que precise de pôr online o fruto destas elucubrações para me emancipar de uma inconsciente necessidade de reconhecimento.

Estou-me a esforçar para esquecer que me possam ler; estou-me a esforçar para fazer as coisas por mim.