quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A solidão


Nascemos e morremos sós: o entre dois é que funciona como parêntesis em que procuramos escamotear essa realidade.

Acredito até que muito dos rituais que dão hoje sentido à vida tenham como principal função a de nos afastar dessa consciência. Porque estar só equivale a uma liberdade potencialmente subversiva: o que compra a paz social é o grau de interdependências em que vivemos.

Por outro lado, acho que é papel do artista ou de qualquer criador o reconciliar-nos com essa dimensão do ser.  São poucas as formas de criação que não sejam individuais. Criar é, para mim, um andar às apalpadelas; e muito do que se apalpa nessa escuridão são os nossos próprios limites.

Lembro-me de ter lido, em tempos, uma frase da Marguerite Duras em que dizia algo do género “escrever é pôr o silêncio a falar”. A Duras é daquelas mulheres para quem a substância da escrita reside no limiar do dizível. Tanto mais que muitos dos artistas ou pensadores que se entregam a uma reflexão individual, esbarram numa falta de sentido denunciada pela solidão.

Pensar assim é perigoso; aliás pensar é perigoso.

Não são raros aqueles cujas viagens interiores os conduzem ao fim.

Então, entre o viver aconchegado no rebanho e o expor-se a essa lucidez solitária, haverá algum compromisso possível?

Haverá forma de dar um sentido à vida que não esteja arreigado aos tais rebanhos?

E será que viver só, mais do que o estar só, tem necessariamente que ser algo de sofrível?

Eu tenho, nestes últimos tempos, reinvestido este diálogo comigo que, na verdade, sempre foi abundante; tenho-o feito por ter durante demasiado tempo vivido na expectativa dos outros me valorizarem; de um dia, me baterem à porta não com um sapatinho de cristal na mão mas com um role de elogios que viessem dar um sentido à minha vida.

Entretanto fui-me tornando adulto e resolvi despir o vestido de princesa.

Hoje, esforço-me por valorizar física e mentalmente o fruto das minhas ações. Mais do que viver um luto, sinto-me gravido de um novo eu. Mas seria mentir dizer que já não preciso do outro para me sentir inteiro.

Surge então um dilema: como lidar sem dor com a insignificância da vida?

Porque aquilo que eu observo é uma imensa vontade de cada um falar e ser ouvido; já do lado de lá, noto muito menos necessidade de escutar e receber. 

Tanta gente por aí com quadros por pintar, com livros por escrever, com amor por fazer; e tantos quadros já pintados, tantos livros nunca lidos ou amores esquecidos.



6 comentários:

  1. "Nascemos e morremos sós: o entre dois é que funciona como parêntesis em que procuramos escamotear essa realidade."
    Desculpa usar as tuas palavras mas dizem tudo, no meu entender. Gostei muito desta tua reflexão Rique

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  2. Fico contente, até porque não te escondo que estava algo desconfortável por poder aqui passar por um gótico depressivo quando, em bom rigor, acho que questionar a relação ao eu é uma das missões do estar vivo.

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  3. sabe bem ler-te Henrique. és tu! suigeneris e pensador e, sem góticomanices.

    beijos da délia

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  4. Embrenhei-me nas tuas palavras e senti-me ali. Foi uma forma de reconhecimento, como se estivesses a dizê-lo em voz alta e eu a acenar com a cabeça, olhos a brilhar e um sorriso para alguém que me compreenda nestas coisas da "solidão". Coloquei entre aspas, porque, falando de mim, não me sinto sozinha, mesmo estando mais de noventa por cento do meu tempo. Chega-se a uma altura da vida em que não ter quase expetativas dá-nos um certo estatuto de se estar bem só porque sim. É claro que só me posso dar a este luxo por já ter vivido tanto, tantos, que não precise de correr à procura de atenção. Ela chega até mim em gestos tão simples, que, como nem os esperava, absorvoos como uma novidade...

    Olha, divaguei, ou não fosse eu que estivesse aqui a escrever. :)

    Muitos parabéns pela tua cultura que não abarco e também pela forma de escrever com a qual me identifico quando emanas de ti estas reflexões que deixam o rasto de um perfume...

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  5. A questão é também a de deixarmos de ver a solidão como um fardo e percebermos que pode ser um privilégio desde que saibamos extrair o melhor dos dois lados... De resto, só posso agradecer a amizade com que me dirigiste estas palavras. Muito obrigado, Eli.

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