sábado, 19 de janeiro de 2013

O corpo máquina


Não sei se isto faz de mim um vanguardista ou um velho, mas já posso começar um texto com uma frase do género: eu sou do tempo do homem de seis milhões de dólares, que relatava os feitos heróicos de um cyborg. Só que na altura era uma série, e agora virou realidade.

Foi nas últimas olimpíadas, a questão do atleta com duas pernas amputadas mas munido de próteses em fibra de carbono,  Oscar Pistorius, e que despoletou a polémica ao ser autorizado a correr junto a atletas ditos normais;  o debate ressurge agora com a confissão do ciclista Lance Armstrong, que ao termo de uma carreira prodigiosa vem confessar ter-se dopado desde o inicio.

Embora pareça consensual o facto do Armstrong não ser uma personalidade particularmente exemplar, a mim, interessa-me aqui questionar a legitimidade com que nos chocamos dos boosts tecnológicos e farmacológicos a que expomos os nossos atletas. 

É verdade que o desporto de alta competição corresponde a uma realidade muito particular que vive apenas em função da cultura do rendimento; não há ali dor que não sirva para ser ultrapassada; não se põe sequer a questão do trabalho infantil ser bem ou mal; e em muitos aspectos, o corpo do atleta é o último elemento dum trabalho de equipa que envolve uma multidão de profissionais de todos os quadrantes: aquele corpo, há muito que já não pertence ao atleta que o usa.

Portanto, assumindo que a arena desportiva encena, de forma espetacularizada, corpos sobrenaturais,  convém questionar o que nós, sociedade, ali procuramos: o que é que representa o número de medalhas que os atletas trazem para casa depois das olimpíadas?

Porque é à luz dessa resposta que encontraremos os fundamentos de tamanho virtuosismo desumanizado.

Não é, de resto, preciso ser especialista para se conseguir reconhecer a modalidade dum atleta só de olhar para a sua silhueta; o corpo atlético é um corpo induzido para uma nova motricidade e esse ponto põe a nu o carácter construído do corpo. Será a presença de uma prótese visível que assinala a barreira entre corpo optimizado e corpo natural?

As federações que lutam contra a dopagem são as guardiãs de uma representação que recusa a ideia dum corpo subordinado à maquina. Contudo, por mais que essa leitura nos desagrade, com ou sem anabolizante, com ou sem prótese de fibra de carbono,  com ou sem fato de banho de poliuretano, raro é o atleta cujo corpo seja hoje natural.

Aliás, em bom rigor, o que é ter um corpo natural?, é não usar óculos?, é não chumbar um dente?, não tomar a medicação para a tensão?... Para não falar das extensões tecnológicas do corpo que são hoje o carro, o telemóvel ou os discos externos da nossa memória.

A questão que se coloca agora à nossa sociedade é a de questionar qual o papel que estamos dispostos a dar à tecnologia nas nossas vidas; ao nível do desporto de alto rendimento, fica a questão de saber se se permanece num modelo desportivo centrado na performance ou se deveremos fazer apelo a uma cultura mais holística da competição e do corpo.

3 comentários:

  1. Convido os mais curiosos a tb lerem este post:

    http://godotisback.blogspot.pt/2012/10/a-sociedade-pos-biologica.html

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  2. "aquele corpo há muito que já não pertence ao atleta que o usa"
    "raro é o atleta cujo corpo seja hoje natural."

    Assim, de repente, parece-me que estás a instrumentalizar "os atletas". Sim, os resultados das suas performances são construídos e devidos a uma equipa multidisciplinar e há todoa uma série de "extensões" do corpo, próteses, suplementos, segundas peles, etc, que entram na equação hoje em dia. Mas, o atleta, acima disso, tudo, é um ser humano, é um indivíduo individual. O que ele faz a si se deve. As "extensões", a tecnologia, nunca vai ter nenhum papel pelo simples facto de que quem desempenha os papeis somos nós, os seres humanos. A tecnologia vai ter o papel que nós quisermos mas vai ser sempre subalterna!

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  3. Admito que sim; tens uma certa razão tanto mais que o que na hora H poderá fazer a diferença é a força mental do atleta e aí estamos, de facto, nas cavernas do Eu. No entanto, a ideia deste texto era a de denunciar alguma hipocrisia face ao nosso olhar sobre a tecnologia; pela simples razão de que anabolizantes, próteses e afins são hoje o reflexo dum corpo social em transformação; todos nós já estamos também kitados e adubados: E o debate que aqui sugiro é o de questionarmos essa maquinização do corpo ou então assumirmos a necessidade de sair duma cultura da simples performance técnica. Uma dessas duas escolhas impõe-se. Caso contrário, estaremos perante uma pura hipocrisia.

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