Aqui segue, então, o meu mea culpa: sim, é verdade,
já aqui abordei muitos autores e ensaios
sem jamais os ter lido; tendo-me apenas ficado por consultas online. Destacaria
o Robert Misrahi e o seu Tratado da Felicidade;
o Gender Trouble da Judith Butler ou
o Why Love Hurts da Eva Ellouz.
E obrigo-me aqui a esta confissão por ter,
ainda há dois posts atrás, feito o
elogio duma cultura vertical onde a referência ao autor e à obra contrasta com
um modelo horizontal de cultura em que, em modos de consumidor, usamos ideias e
melodias sem em momento algum reverenciar ou remunerar o seu criador.
Reconheço a total injustiça e até imoralidade
deste modelo, mas não posso negar que faço também eu parte desta cultura karaoke. E como dito no post anterior, ando a ler o “Como falar dos livros que nunca lemos”, do Pierre Bayard onde se dessacraliza com bastante humor a relação ao livro; ao ponto de
nalguns casos se recomendar a não leitura como forma ideal de manter uma visão
de conjunto propicia a opiniões convincentes.
Mas sem chegar a este extremo, são ainda
citados exemplos como o de Montaigne, que padece de uma memória tão aérea que
acaba por não se lembrar se leu ou não leu um determinado livro; isso, porque
“o que me fica é coisa que não reconheço ser do outro (...) o autor, o lugar,
as palavras e outras circunstâncias, esqueço-as, incontinente”
Outros exemplos há em que sucede todo o
contrário: é o caso do bibliotecário do “homem sem qualidades” que nunca leu
nenhum dos livros da sua biblioteca mas que pode falar e referenciar cada um deles, depois de lhes ter lido o índice.
Portanto, ao termo do ensaio, fica a questão
de saber o que é que se entende por ler um livro: a título de resposta, Bayard brinda-nos com a sua teoria da dupla orientação que consiste em sabermos situar uma obra
num determinado contexto histórico e de nos sabermos, em última análise,
situarmos a nós próprios dentro dela.
Toda esta teoria, reconduz-me para a lógica de
um dos prémios literários mais originais de que já ouvi falar: le Prix de la page 112. Como o nome
indica, trata-se dum prémio cujas obras selecionadas são apenas avaliadas pelo
conteúdo da página 112; e isso, com tudo o que implique livros com página 112
em branco ou com menos de 112 páginas.
Há algo de absurdo dentro de tudo isto, mas se
formos a ver a forma como se processam as pré-seleções de livros noutros grandes prémios, em que se reduzem
milhares de exemplares a duas dezenas, não se duvide de que este procedimento
da página 112 não fugirá muito ao utilizado pela maioria dos leitores
profissionais.
O bom deste ensaio escrito por uma
personalidade reconhecida no meio literário, e que faz ao longo deste livro a
apelo a muitas sumidades intelectuais que também partilharam do principio da
leitura diagonal, é que tem o mérito de falar verdade.
Bem ou mal, parece-me saudável sermos capazes
de deixar de papaguear uma cultura do politicamente correcto, dissimulando verdades. Advogo aqui o direito de se poder opinar sobre uma obra folheada;
libertemo-nos deste principio de cultura vertical que inibe a palavra.
Há que admiti-lo, não é para todos ler os dois
volumes do Don Quixote; os oito da obra do Proust. É natural que sejamos selectivos. Contudo, não vejo por que razão deixaríamos de poder questionar ou até
discursar sobre essas obras por não as termos lido, por completo.
Mais do que ler ou não ler, acho que importa
aqui premiar um principio de honestidade face à fonte. Numa altura em que há tanta adaptação
cinematográfica de livros, que os alunos só se baseiam na wikipédia, parece-me por demais hipócrita e vão, mantermos um
discurso que exclua toda a pluralidade das fontes que em muito contribuem para a vitalidade da obra.
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