quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A autobiografia


Fui ontem à aula de escrita criativa, à qual foi convidado o autor João Ricardo Pedro. Mais uma vez, a questão com que se abriram as hostilidades era a de saber se a literatura era sempre autobiográfica; e mais uma vez, a resposta foi positiva.

Não é que este pressuposto, questionável, me incomode. É apenas que vai ao encontro de uma tendência que eu já aqui dei como preocupante:  É esta eterna procura do eu por detrás de grande parte das obras dos criadores.

Por um lado é natural já que o eu é a substância que o autor consegue trabalhar com maior sinceridade e profundidade. Coloca-se-me a questão agora de saber se nós, neste caso como leitores, também nos procuramos por detrás desse eu.  É que se tudo isso se confirmar,  estaremos aqui perante um problema a que me apetece chamar a sociedade do ego.

E isso, torna-se mais do que preocupante, lamentável. 

Porquê, perguntar-me-ão:
... Porquêêêê ?

Porque temos hoje oportunidades únicas de experimentar numa só vida muitas alteridades. Nada nos impede de amanhã criarmos um avatar e por um serão sermos uma pessoa do sexo oposto; nem que seja só para experimentar um engate; sentir "na pele" o quão difícil é ser o outro e quão pouco natural são os nossos reflexos.

Quando a internet surgiu recordo-me de ouvir visões proféticas que nos prometiam redes de amigos espalhados pelo mundo; pois o que eu observo é que a internet acoplada à mundialização geraram ansiedade face à diferença do outro e que a maioria dos cibernautas procura os seus vizinhos pelas mesmas razões que as avós da aldeia o faziam.

Mais: esqueçamos o mundo virtual por uns instantes. Por que razão não brincamos nós com as indumentárias do quotidiano em vez de as levar tão a sério. Porque é que se eu me apresentar hoje como gótico, amanhã como bomba sexual e depois de amanhã como trabalhador modelo me virão acusar de me estar a armar no que não sou? Porque não brincar com as aparências em vez de lhes querer atribuir esse papel de fiel garante da alma?

Tudo isto são exemplos que ilustram o quão pouco libertos nos estamos a tornar face ao nós.  Preside em tudo isto um pressuposto incómodo que subentende que  a construção do eu é um processo frágil com que não se deve brincar. 

Mo meio de tudo isso, talvez me reste admitir, voltando ao caso da literatura e da escrita, que em conjunto com as artes de palco não deixam de ser para mim o maior convite à alteridade que nos seja possível viver numa só vida. 

Quiçá seja daí que me venha esta tendência em começar por dizer algo para terminar dizendo o seu contrário. 

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