terça-feira, 23 de outubro de 2012

A sociedade pós-biológica


Rescaldo de um serão tecnológico:  hoje foi a noite em que explorei a minha nova box da Iris; a tal que permite gravar ou programar gravações de séries e afins... É suposto ser um incremento de escolha e liberdade mas a verdade é que passei o serão a pré-formatar um conjunto de filtros e preferências que fazem de mim um míope cada vez mais exposto ao preconceito.

Este pequeno episódio trivial da vida de um solteirão barbudo faz eco a algumas teorias transumanistas às quais tenho andado sensível nestes últimos tempos.  Para os menos informados, o transumanismo ou pós humanismo consiste num conjunto de teorias que advogam que a humanidade está votada a superar os determinismos da biologia através da técnica; que a tecnologia será cada vez mais uma parte integrante do ser humano e das suas possibilidades. 

Se há pouco mais de dez anos, ainda achávamos que o telemóvel era coisa de trolha exibicionista, hoje já ninguém o dispensa: e digo isto, antes de evoluir para cenários futuros, precisamente para deixar claro que, por mais valores que possamos aqui defender, raros são aqueles que não estão expostos às necessidades futuras que a tecnologia procurará inculcar em cada um de nós: as promessas dos tecno profetas vão desde os apoios domiciliários a idosos solitários – robot de companhia cujo exemplo mais emblemático é a Matilda – a chips subcutâneos que estão ligados aos demais gadgets do nosso quotidiano. Atenção, precisa de beber mais água ou melhor ainda, aparece-lhe em casa uma ambulância do INEM depois do chip ter detectado um risco de AVC...

Parece-lhe um cenário de ficção científica, não é?

Pois não, não é. É algo de bem real. 

É aliás essa a guerra que se travam as nações desenvolvidas na antecipação das patentes do futuro; é também neste campo que se jogam os principais desafios na Silicon Valley: aí mesmo onde se implantou a Universidade da Singularidade - criada por Ray Kurzwell, guru do transumanismo – a dois passos da sede da NASA e logo ao lado da da Google. Sim, porque se estas teorias têm hoje tamanha pujança é porque têm por detrás um poderosíssimo lobby financiado pelas dot.com, ou seja por todos esses empresários que entendem que o mundo é informação.  Uma visão hoje alargada a um projecto ultra liberal de sociedade futura em que serão necessárias cada vez mais máquinas para conseguir dar resposta à aceleração do tempo e ao aumento das solicitações de quem aspirar a esta sociedade dos que conseguem.

Este é aliás um processo que já se encontra francamente adiantado.  Uma questão: quem detém mais informação sobre si?, a Google e o Facebook ou o Estado português?

Por detrás da resposta estão soluções de numerização de dados na génese da modelização tecnológica do Eu. As técnicas usadas passam precisamente  pelo cruzamento de uma sucessão gigantesca de algoritmos que o definem a Si, à semelhança das práticas que a Google usa para cada vez mais o identificar. Jamais aliás um Estado seria autorizado a cercá-lo de tão perto.

É claro que este é um processo que está na convergência de desafios políticos, éticos e científicos. Até porque um modelo de sociedade tecnológica que visa um incremento constante de capacidades, traduz-se necessariamente numa sociedade fracturada em duas partes bem distintas; de um lado os que podem, do outro os que não podem.  A relação que mantemos hoje face à tecnologia ilustra desde já esta fronteira: os que vivem a vida através de representações virtuais face aos que ainda conseguem vivê-la e apreciá-la in situ.

Termino, parafraseando a romancista e ensaísta Isabelle Sorente,  “o homem tornou-se o elo mais fraco da guerra do futuro”.  O homem ainda tem fome; tem frio; envelhece.

Fica a eterna questão de saber se o homem domina a tecnologia ou se a relação de força já está irreversivelmente invertida. 

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