João Serra: é o nome daquele homem que acenava
aos lisboetas e que morreu há já coisa de dois anos.
João Serra é o meu herói. Recordo-me
aliás que no dia em que se soubera da sua morte, o suposto anónimo rivalizara
com Steve Jobs em matéria de posts
no muro da rede social azul. É giro, aliás, como a realidade que merece interesse
nos corredores das tais redes é, com frequência, tão distante das manchetes da
imprensa diária.
Na verdade, o que me leva a resgatar a memória
deste homem, cuja história me é largamente desconhecida, é a atitude com que
resolveu brindar diariamente os lisboetas. O que me marca naquele senhor é a
gratuidade com que se predispôs a diariamente ir ali cumprimentar milhares de
automobilistas apressados. O interesse era dar. Não interessava o que se
poderia receber em troca. Mais do que tudo, tinha que partilhar.
E assim foi: deu e foi-se; e ficou uma
lembrança. A daquele homem que do nada se lembrou de transcender a solidão com
uma dádiva.
Esta história toca-me até porque não sou
insensível às coisas cuja beleza se consome na sua fruição. Acho que a vida
também é isso. Apesar de vivermos uns tempos muito avessos à imaterialidade do
fugaz; basta ver a facilidade com que se tira uma fotografia à primeira coisa
supostamente memorável. Alimenta-se a ilusão de que levamos um bocadinho
daquele momento para casa.
Esta coisa de termos de materializar tudo; de
sermos formatados para a posteridade; para o património; de deixarmos marcas
das nossas vidas para lhes dar sentido; não será mais sensato aceitar as coisas
através da emoção que mereceram em nós naquele momento?
Recordo-me de ter lido em tempos o Livro das Ilusões, do Paul Auster. Gostei
imenso dessa história em que um cineasta rejeitado de uma indústria tornada
mais comercial, com o advento do cinema sonoro, decide isolar-se do mundo para
criar filmes desprovidos de qualquer concessão.
Fizera dali em diante somente os filmes de que gostara em nada
preocupado com o que público pudesse entender ou apreciar. Recordo-me que o desejo de autenticidade do
cineasta era tal que fizera jurar à companheira que queimaria toda a sua obra
no dia em que morreria.
E de facto, fazer as coisas na perspectiva de
um retorno altera-lhes a substância. Eu, confesso preferir a foto mental à impressa;
a memória subjectiva ao facto datado; revejo mais generosidade numa dádiva
gratuita do que num legado.
Mas a perversão em que nos passámos a
relacionar é tal que quando se nos aproxima alguém a querer dar-nos seja o que
for a reacção primeira já é a de dizer que não por intuirmos que, nada sendo
gratuito, aquele dar equivale a um pedir.
Por isso, repito, aqui o meu obrigado a todos
os que se empenham em diariamente alimentar em mim a
capacidade de dar e receber, sem medos.
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