Há uns anos, um
amigo perguntava-me: porque é que não usas lentes?, nunca te ocorreu que te
podes estar a esconder por detrás dos óculos?
A pergunta
intrigou-me, de tal modo que ainda hoje me lembro dela. Quiçá haja alguma
verdade nisso. O que é certo, é que tenho recentemente sentido uma necessidade de
me livrar dos óculos. Comecei, por isso, a usar lentes de contacto e confesso
que estes têm sido tempos de deslumbramento. Aquilo que mais me tem arrebatado
nesta vida sem moldura é olhar para o céu; principalmente se for através dos
ramos das árvores. Há ali uma intensidade e uma nitidez, principalmente na hora
do lusco fusco. Aquele azul violáceo sempre foi a minha cor favorita, mas ali;
e agora; ui.
Há mais beleza à
minha volta mas há também mais rugas no espelho. Descobri por detrás dos óculos
aquelas ruguinhas de volta dos olhos.
Isto recorda-me a
história da minha vizinha de cima que regressava há dias de uma temporada em
casa da filha. Fiquei a saber que fora operada às cataratas. Mas naquele
momento, não eram os olhos dela que preocupavam a dona Maria: eram as mãos.
Eu não tinha essas
sardas todas. Olhe lá para estas mãos. Parecem mãos de velha. Aqui entre nós a
dona Maria tem 86 anos e há já uns anos que as cataratas lhe vinham turvando as
vistas fazendo dela uma espécie de artista surrealista.
Isto do desvendar a
vista, desvenda também a memória. Lembro-me ainda de uma conversa ocorrida há já
uns bons 15 anos com o Emídio; das raras pessoas que admirei nesta vida. O Emídio
estudava física e um dia, aliás uma madrugada ressacada, o Emídio calara-me com
esta: “o problema dos tipos das Ciências Sociais é que como não percebem nada
dos fundamentos físicos da vida, partem logo para grandes viagens filosóficas”.
Ainda que dito assim, possa parecer caricatural, era verdade. Talvez ainda
seja.
Mas desengane-se
quem concluir que estou aqui a fazer o elogio da objectividade. Não, um lírico
não se refaz; continuo a preferir a dúvida à certeza; mas não impede que me
agrada este contraste repentino; esta nitidez. Afinal era isto?; afinal este
sou eu?
No entanto, continuo
a gostar da minha miopia especialmente quando atravesso alguns bosques mais
pornográficos da minha vida. Alguém aqui me explica que necessidade têm certas
pessoas de se resumir a um genital em fotos de perfil de engate?; haverá
necessidade de se ver tudo?, haverá um desejo proporcional à quantidade de pele
que se exibe?
Duvido.
Aliás, sem me armar
aqui no que não sou, sei que continuo a
desejar aquilo que menos vejo. Acho que a minha miopia fez de mim um ser meio
fetichista. Gosto, por vezes, de só ver a sombra das coisas para poder imaginar
o resto. Gosto de cultivar a minha – não a dos outros – caverna da alegoria de
Platão; tentar descobrir o original através da sua sombra. Resta agora saber
quem é em mim o original; se o tipo com óculos e sem rugas se o marmanjo que põe
lentes de contacto para sair à rua como quem se maquilha antes de uma festa.
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