domingo, 9 de setembro de 2012

O Paradigma



Ataquemos aqui o nervo da guerra. Neste incursão pelas palavras, aviso já que me vou desforrar sem pudores e sem vergonha de usar aqueles palavrões bem pomposos.


Pois bem, há aqui uma tendência que nem sei qualificar ao certo mas que não deixa de me alarmar.


Ao longo dos últimos anos, foi crescendo à minha volta o número de pessoas que foi trocando uma cultura do intelecto pela cultura new age do bem-estar intimo: Por detrás dessa mutação, vieram algumas guinadas de vida, com micro projectos ligados ao artesanato, ao yoga ou à meditação. Ao lado disso, foi crescendo uma descrença generalizada nas soluções políticas e afins; enfim, parece-me que os meus contemporâneos estão a ressacar o fracasso de uma cultura mental e retórica.


Ouço cada vez mais pessoas a valorizar um sussurro intimo que lhes aponta o caminho a seguir; por detrás dessa voz interior, ventila-se a ideia de que existe um desígnio intimo impregnado nas nossas vidas. E que essa mesma vida assume como principal função a descoberta desse eu, intoxicado pela malvada sociedade.


Eu chamo a esse padrão, o modelo essencialista: entenda-se, uma doutrina que  olha para a existência enquanto processo revelatório.  A vida e o futuro tornam-se assim um grande campo de descoberta do eu original.

Em contraposição a esse modelo, há aquilo a que eu chamo o modelo relativista, de que filósofos como o Foucault são exemplo. Aí, a lógica recusa qualquer matriz purista. Aqui, assume-se que o ser humano e demais formas de vida são uma permanente combinação de factores exógenos, ou seja de factores imprevisíveis.


O frente a frente entre essas duas doutrinas é relativamente fácil de ilustrar. Imagine-se uma conversa de café em que se comente um acidente ou até uma doença grave que assole um nosso conhecido. Pois os essencialistas advogarão que nada acontece por acaso e que aquele acidente ou doença tinha ou terá uma razão de ser. Já os relativistas defenderão que não há lógica nem razão de ser para muito daquilo que nos acontece.


Não resisto aqui a introduzir um aparte tendencioso: imaginem o peso que não cai nos ombros do tipo assolado por um azar e que ainda tem de lidar com o facto de que se tem, suponhamos, aquele cancro foi porque de alguma forma o atraiu. Mas adiante.


Pois o que me preocupa face à coexistência desses dois modelos de reflexão é que a espécie de determinismo que pauta o discurso essencialista retira à liberdade individual o poder de transformar o mundo pela acção de rua. Numa altura em que se assiste a convulsões sociais extremamente profundas, vejo uma parte significativa dos meus comparsas a abandonaram o campo de batalha; ora porque, lá está,  “tinha que ser “ ou é porque “o meu interesse pessoal está desligado dos desígnios do rebanho”.


É grave.


E é grave não só à escala desta nossa realidade nacional ou pessoal. É grave porque por detrás do pressuposto relativista hoje em crise há um legado histórico, que procurou fazer da liberdade e do direito à autodeterminação um valor basilar, que fica também ele fragilizado. Desde as teorias do género a catarses artísticas, a segunda metade do século XX procurou em muitas frentes recusar  qualquer visão teleológica da história.


Pois esta tendência inverteu-se. Se na altura a ideia era ir descobrir outras galáxias, a lógica agora é a da revelação das nano galáxias. As grandes aventuras colectivas deixaram de embalar os nossos sonhos.  A liberdade deixou de ser um valor galvanizador. 


Dou por mim a ouvir líderes emergentes da economia mundial como Putin ou dirigentes chineses a insinuar que a hipervalorização da liberdade é coisa de ocidentais, chegando a repor em causa o carácter universal da declaração dos direitos humanos.


Ou seja, há entre o aumento da implosão das consciências e a crescente instrumentalização - para não falar em furto - das liberdades públicas e individuais uma correlação potenciadora de algumas derivas. No dia em que o poder política acha que um referendo grego é inadmissível (é pobre e mal agradecido, queres ver, hã !!!); no dia em que mais um conjunto de reformas económicas é anunciado numa sexta ao final do dia (véspera de um fim de semana solarengo na Costa da Caparica) a ver se passa; Pois nesse dia, parece-me que chegamos à erosão de uma parte significativa da noção de democracia participativa.

E sim, eu imputo isso, em boa parte ao tal paradigma essencialista, que corta a relação umbilical do sujeito ao grupo.  Pelo menos, no que toca à capacidade das pessoas se unirem na resolução dos problemas da comunidade.


Bem sei que não existe uma só forma de fazer o bem. Com certeza que haverá muitos bons exemplos de militantismo  que dispensam o uso de legendas faladas.  Não se trata aqui de resumir as formas de activismo ao uso da palavra. Mas não deixo de considerar que é um legado valioso este o de podermos criticar ou defender livremente ideias na origem de reformas. 

Recordo que a defesa da liberdade nasceu de muitos esforços, sonhos e sacrifícios e acho importante sabermos não desperdiçar este valioso legado da nossa história. Mais, desengane-se quem achar que há direitos adquiridos eternos. O grau de alienação de muitos dos nossos amigos e vizinhos é disso exemplo.

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