quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Os óculos


Há uns anos, um amigo perguntava-me: porque é que não usas lentes?, nunca te ocorreu que te podes estar a esconder por detrás dos óculos?

A pergunta intrigou-me, de tal modo que ainda hoje me lembro dela. Quiçá haja alguma verdade nisso. O que é certo, é que tenho recentemente sentido uma necessidade de me livrar dos óculos. Comecei, por isso, a usar lentes de contacto e confesso que estes têm sido tempos de deslumbramento. Aquilo que mais me tem arrebatado nesta vida sem moldura é olhar para o céu; principalmente se for através dos ramos das árvores. Há ali uma intensidade e uma nitidez, principalmente na hora do lusco fusco. Aquele azul violáceo sempre foi a minha cor favorita, mas ali; e agora; ui.

Há mais beleza à minha volta mas há também mais rugas no espelho. Descobri por detrás dos óculos aquelas ruguinhas de volta dos olhos. 

Isto recorda-me a história da minha vizinha de cima que regressava há dias de uma temporada em casa da filha. Fiquei a saber que fora operada às cataratas. Mas naquele momento, não eram os olhos dela que preocupavam a dona Maria: eram as mãos.

Eu não tinha essas sardas todas. Olhe lá para estas mãos. Parecem mãos de velha. Aqui entre nós a dona Maria tem 86 anos e há já uns anos que as cataratas lhe vinham turvando as vistas fazendo dela uma espécie de artista surrealista.

Isto do desvendar a vista, desvenda também a memória. Lembro-me ainda de uma conversa ocorrida há já uns bons 15 anos com o Emídio; das raras pessoas que admirei nesta vida. O Emídio estudava física e um dia, aliás uma madrugada ressacada, o Emídio calara-me com esta: “o problema dos tipos das Ciências Sociais é que como não percebem nada dos fundamentos físicos da vida, partem logo para grandes viagens filosóficas”. Ainda que dito assim, possa parecer caricatural, era verdade. Talvez ainda seja.

Mas desengane-se quem concluir que estou aqui a fazer o elogio da objectividade. Não, um lírico não se refaz; continuo a preferir a dúvida à certeza; mas não impede que me agrada este contraste repentino; esta nitidez. Afinal era isto?; afinal este sou eu?

No entanto, continuo a gostar da minha miopia especialmente quando atravesso alguns bosques mais pornográficos da minha vida. Alguém aqui me explica que necessidade têm certas pessoas de se resumir a um genital em fotos de perfil de engate?; haverá necessidade de se ver tudo?, haverá um desejo proporcional à quantidade de pele que se exibe?

Duvido.

Aliás, sem me armar aqui no que não sou,  sei que continuo a desejar aquilo que menos vejo. Acho que a minha miopia fez de mim um ser meio fetichista. Gosto, por vezes, de só ver a sombra das coisas para poder imaginar o resto. Gosto de cultivar a minha – não a dos outros – caverna da alegoria de Platão; tentar descobrir o original através da sua sombra. Resta agora saber quem é em mim o original; se o tipo com óculos e sem rugas se o marmanjo que põe lentes de contacto para sair à rua como quem se maquilha antes de uma festa.

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