O ano de 1999 foi o meu ano norte-americano: vivi-o
em Saint Louis, cidade onde tive a minha estreia profissional. Já tinha passado
um summer camp na Pensylvânia, no
Moravian College, mas esta imersão no life style norte-americano com
direito a ter de mobilar uma casa e comprar um carro ajudou-me a transcender as
caricaturas com que normalmente olhamos para o outro lado do Atlântico.
Uma das muitas surpresas que os States me reservaram foi o haloween: um autêntico fenómeno local até
porque lá, as cidades enfeitiçam-se de laranja com o mesmo aprumo que pelo
natal. Mas a verdade é que o que fora ali exótico deixara de o ser no ano
seguinte, quando já de volta a Portugal, me deparei com o mesmo haloween a de repente substituir-se em
largas franjas da população ao tradicional dia de Todos os Santos.
Confesso que continuo a manter um especial
desprezo por esta importação cultural por tudo o que ela possa aqui
significar. É mais um pretexto para
comprarmos inutilidades coloridas e travestirmos um dia dedicado à memória dos defuntos num carnaval de
consumo. Como se a tristeza, melancolia
e saudade não tivesse lugar nas nossas cidades; é preciso celebrar a vida
comprando-a.
A morte passou a fazer parte dos tabus da
modernidade.
Eu sei que foi precisamente nesse mesmo ano de
99 que tive das ocasiões mais interessados de pensar a morte; isso porque
trabalhava, na altura, numa multinacional cujos trabalhadores vinham também
eles dos quatro cantos do planeta pelo que com frequência passávamos serões a
conviver questionando singularidades locais.
E recordo-me que a atitude e os
rituais que rodeavam a morte eram dos que mais se destacavam no meio de
quotidianos e anseios já muito uniformizados. Lembro-me, por exemplo, de que em
Marrocos, era suposto enterrar o corpo do morto enquanto ainda estivesse quente; uma
tradição nascida de riscos de salubridade pública. De modo que no norte de África o luto centra-se
não em torno do defunto mas de volta da família em luto, servindo de pretexto
para reabilitar partilhas e recordações ao longo de vários dias.
Já no norte da Europa, a vivência
da morte já me parecera um processo bem mais púdico. O corpo é guardado numa pequena sala refrigerada da agência mortuária durante toda a
semana que segue o óbito. Os familiares podem assim privar com os restos
mortais até ao dia da cremação, em que o
defunto é trazido da sala refrigerada para a sala de cremação, onde decorre uma pequena cerimónia ao longo da qual o corpo já não chega a ser destapado em público.
Mas voltando às mudanças com que se vai
olhando para a morte nas nossas sociedades quer-me parecer que o facto do tempo
que cada um reserva para o luto diminuir ser um fenómeno que vai de par com o
deixar de reconhecer a utilidade da morte; como se a vida só fizesse sentido
face a um presente futuro.
Recordo-me de ter visto em tempos um documentário
no qual os seniores tokyoitas eram, mal chegava a idade da reforma, vigorosamente
convidados a deixar os apartamentos de um vida em centro urbano. Daí rumavam para condomínios com relvados e casinhas bonitinhas para velhos, situados em ilhotas bem afastadas das cidades. Parece que a urbe mais povoada
do mundo não dispõe de espaço para não trabalhadores.
Pois para mim, viver é morrer; esta coisa de
se estar a crescer ou a envelhecer é, em substância, o mesmo fenómeno. Por isso até acho saudável aquela prática
comum no sudeste asiático de enterrar os mortos nos quintais e nos centros
urbanos em vez de os amontoar em bunkers de cimento. Não digo que seja um
modelo para levar à letra, mas acho importante que saibamos manter vivos rituais
como o dia de Todos os Santos e não fazer da morte aquela coisa escondida nas
últimas páginas da imprensa local ou nas traseiras das nossas cidades.
Porque se viver é morrer, saber viver também é, em certa medida, saber lidar com a morte.
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