Fui ontem à noite à Cinemateca ver o Amarcord do Fellini e lembrei-me de um
comentário da minha mãe, dias depois de lhe ter dito que era gay. Tanta
instrução, tanta experiência: se calhar se tivesses vivido noutros tempos ou
noutras realidades mais simples, quiçá tivesses tido vontades também elas mais
simples.
Este comentário fora-me dirigido com afecto e
sem especiais censuras, e contrariando o discurso da época, subscrevo essa
análise. O aumento do número de homossexuais nas grandes cidades não é mais
para mim do que o aumento das condições que permitem a sua vivência. Em
substância, se eu vivesse há cinquenta anos no meio rural há fortes
probabilidades para que eu tivesse sido um homem casado com uma mulher e sem ser
necessariamente recalcado; acredito que a frustração nasça mais da
comparação do que de realidades potencialmente desajustadas.
Mas sem nos ficarmos na especificidade gay,
aquilo que o Amarcord me espelhou foi a capacidade dos habitantes daquele burgo
italiano dos anos cinquenta se ligarem para viverem em comunidade. E noto que o
nosso actual modelo social enferma de um mal crónico a esse nível. Investimos,
nas últimas décadas, na qualificação dos percursos individuais: emancipámo-nos;
qualificámo-nos; direcionámos muitas das nossas vontades para a construção ou
descoberta de um eu. Chegámos ao ponto em que o eu deixou de ser capaz de
formar um nós.
As cidades estão cheias de gente formada
solitária. Uma realidade aliás mais perceptível junto ao sexo feminino. O
número de amigas que eu tenho que atravessam os trinta sem darem a mão a
ninguém. Todas cheias de qualidades: giras, autónomas, espertas, com humor.
Quando nos ocorre falar dessa solidão afectiva
confesso já nem saber que lhes diga. Elas bem que se questionam e repõem em
causa mas eu acho é que à margem das inibições individuais acredito mesmo que
haja um problema endémico à nossa sociedade. Há algo que deixou de funcionar: o
outro com o seu role de diferenças e expectativas passou a ser um impeditivo
para a plenitude do eu; ou pior, a ideia
de compromisso amoroso poder aqui assinalar o fim de um mundo de projeções
idealizadas.
A isso acresce a tecnologia. Estamos todos
neste preciso momento a olhar para um ecrã; é esta a nova comunicação; algo que
se alimenta e que alimenta as nossas solidões.
Agora voltando ao Amarcord, não se pense que eu estou aqui a querer acordar o morto;
sei que aqueles frescos inspirados de recordações da infância do Fellini são
também eles embebidos de alguma idealização. Apenas noto que há um rácio
inegável entre o grau de instrução e a propensão para uma vida solitária. Será
de hoje?; será o próprio do ser humano enquanto ser pensante?
Acho que não.
Pego no exemplo do filósofo grego Epicuro,
hoje tão mal conhecido. Na génese do seu
pensamento encontram-se três princípios: liberdade resultante de uma
autonomia material; espaço para a introspecção e, por último, viver uma vida
rodeado de amigos: este último ponto era aliás para o filósofo da felicidade e
do prazer o aspecto principal da sua doutrina.
E também eu acho que não há vida que mereça
ser vivida se não for partilhada.
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