Desde sempre que sou assim: quando era miúdo, quem se atrevesse a enfiar a mão dentro da minha sacola, no meio das canetas de
feltro sem tampa, de testes e rascunhos amarrotados e meio embebidos de tinta
permanente lá ia encontrar os meus cadernos.
As primeiras páginas eram sempre
irrepreensíveis: a data sublinhada a régua, de encarnado; caligrafia cuidada,
alíneas espaçados... Mas conforme continuasse a desfolhar o caderno, começavam
a aparecer partes em branco que passado mais umas páginas se tornavam em
páginas em branco; às tantas o caderno já era mais um deserto de espaço por
preencher pontualmente habitado por um oásis de escrita, geralmente imputável a
uma segunda de manhã voluntarista.
Por detrás desse estilo muito pessoal
estava um miúdo que se aborrecia na escola; que achava um desperdício o ter de
estar ali a passar para o caderno o que se dizia ou escrevia no quadro. Logo copias
de outro caderno.
E lá levantava vôo. A técnica da hélice era
das minhas favoritas: enfiar a caneta bic no orifício central da régua, cujo
pequeno pino metálico já voara também ele, e pôr a régua a girar, girar,
girar. Claro que não demorava muito em ser apanhado daí que a escola me tivesse
igualmente ensinado a arte do playback, muito útil nas aulas de flauta: como
fingir que estás ali quando estás para além de Bagdad.
E a coisa foi-se apurando: na faculdade, há
quase que uma maioria de cadeiras à qual nunca pus os pés. Na altura, já o esquema era mais organizado: havia ali o “dealanço” das fotocópias. Alguém algures
cravava o caderno a uma marrona, daqueles que até fazia sínteses dos
apontamentos; o pessoal fotocopiava e tal e de véspera antes da frequência,
pimba, lá apurava a técnica da leitura diagonal, precursora da era facebook. Claro que ia de directa pá
frequência e pronto: esta, já está.
Em causa neste percurso brilhante está
nomeadamente a minha tendência para adiar: já em idade adulta, cheguei a ter dossiês com recortes de imprensa por
ler. A maior pilha sempre fora a das crónicas do Sousa Tavares. Sempre soube
que estava ali um banco de saber a não deitar fora mas lá está: pode esperar
não é; então que fique para mais tarde; tenho mais que fazer: voar.
Aqui estão eles, por todo o lado à minha volta: os montinhos. Quando olho para as revistas por ler; livros por terminar; lista de links em pastas de coisas por fazer; montes de recortes... Sinto que é uma vida por viver que está ali fragmentada em montinhos de migalhas feitos mausoléus da culpa; porque é disso que se trata. A certa altura o vôo já é uma fuga ao aqui por este só refletir o número de coisas que ficaram por fazer.
... Se me lembrei desta viagem foi por ter chegado ao
pc hoje de manhã, e a coisa estar tão atulhada de janelas abertas, algumas há
uma boa semana, que tive de passar para a minha lista de "links por ler" os endereços
de modo a poder fechar aquilo tudo e reiniciar a besta encravada.
Se recordo tudo isto com um sorriso, também
sei que a procastinação tem sido dos meus principais demónios. Conheço-lhe hoje
o nome por ter sido diagnosticado hiperactivo; e este é um dos traços mais
característicos daquilo que eu considero ser uma doença. Sei que tomo agora um
drunfo e, do nada, deixo de olhar pás estrelas para olhar para a frente e
pôr a locomotiva em marcha. Confesso que é uma paz; ser capaz de fazer coisas
em vez de ficar sempre na berma da estrada a analisar e a sonhar.
Por isso, digo-vos aqui, viva a droga: não
tenho saudades nenhumas destes meus montinhos da culpa.
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