Esta cena já deve datar de ano
2000; sei que estávamos a sair do cine estúdio 222, ali no Saldanha, na época
em que ainda era gerido pela zero em comportamento… Vínhamos comentando
o filme do Tarkovsky quando a Joana me pede para abrandar o passo só para ver
ali uma coisa.
Estava à nossa frente um contentor atulhado de objectos e entulho deitados fora de um apartamento em curso de remodelação. No meio de cacos cerâmicos e de plástico, o olho exímio da Joana lá detectou um conjunto de três álbuns fotográficos. Um desfolhar distraído deu logo indícios do pequeno tesouro que ali estava de modo que prosseguimos o nosso percurso a pé com as três relíquias debaixo do braço.
Para mim, a conclusão era clara: a
dita senhora morrera e o tal filho, o miúdo das férias na Covilhã, as suas
filhas e toda a galeria de personagens ali embalsamadas não arranjaram melhor
uso a dar aquele pedacinho de imortalidade do que deitá-lo fora.
É claro que apesar destas recordações serem um pequeno tesouro é de esperar que tenham merecido outro destino que aquele dado às eventuais poupanças deixadas na conta bancária.
Pois eu não sei como é que eu um
dia hei-de lidar com o eventual património que me possa vir parar às mãos mas a
verdade é que esta cena chocou-me. Foi mesmo um traumatismo. Durante muito
tempo, sempre que dava por mim a entusiasmar-me com a beleza dum instante
querendo fotografa-lo, lá vinha a imagem dos álbuns a recordar-me Henrique,
guarda este momento para ti: ninguém mais tem interesse em relembrá-lo; nem tu
próprio terás, passado o entusiasmo do instante.
Esta foi aliás a razão pela qual
demorei tanto tempo até me apoderar este espaço na blogosfera: achava e acho de
algum modo pretensioso e um pouco vão, o alimentar esta ilusão de que o
interesse das nossas experiências possa ser partilhado.
A verdade é que me perdia aqui há dias num devaneio em
torno da morte, mas se a mesma tem alguma função nas nossas vidas será bem
essa: a de nos recordar não apenas de que tudo tem um fim e que, em última
análise, poucas coisas saberão restituir a magia de um instante
presente...(cont)
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