Fui ontem à aula de
escrita criativa, à qual foi convidado o autor João Ricardo Pedro. Mais uma
vez, a questão com que se abriram as hostilidades era a de saber se a
literatura era sempre autobiográfica; e mais uma vez, a resposta foi positiva.
Não é que este
pressuposto, questionável, me incomode. É apenas que vai ao encontro de uma
tendência que eu já aqui dei como preocupante: É esta eterna procura do eu por detrás de
grande parte das obras dos criadores.
Por um lado é
natural já que o eu é a substância que o autor consegue trabalhar com maior
sinceridade e profundidade. Coloca-se-me a questão agora de saber se nós, neste
caso como leitores, também nos procuramos por detrás desse eu. É que se tudo isso se confirmar, estaremos aqui perante um problema a que me
apetece chamar a sociedade do ego.
E isso, torna-se
mais do que preocupante, lamentável.
Porquê,
perguntar-me-ão:
... Porquêêêê ?
Porque temos hoje
oportunidades únicas de experimentar numa só vida muitas alteridades. Nada nos impede
de amanhã criarmos um avatar e por um serão sermos uma pessoa do sexo oposto;
nem que seja só para experimentar um engate; sentir "na pele" o quão difícil é
ser o outro e quão pouco natural são os nossos reflexos.
Quando a internet
surgiu recordo-me de ouvir visões proféticas que nos prometiam redes de amigos
espalhados pelo mundo; pois o que eu observo é que a internet acoplada à
mundialização geraram ansiedade face à diferença do outro e que a maioria dos
cibernautas procura os seus vizinhos pelas mesmas razões que as avós da aldeia
o faziam.
Mais: esqueçamos o
mundo virtual por uns instantes. Por que razão não brincamos nós com as
indumentárias do quotidiano em vez de as levar tão a sério. Porque é que se eu
me apresentar hoje como gótico, amanhã como bomba sexual e depois de amanhã
como trabalhador modelo me virão acusar de me estar a armar no que não sou?
Porque não brincar com as aparências em vez de lhes querer atribuir esse papel
de fiel garante da alma?
Tudo isto são
exemplos que ilustram o quão pouco libertos nos estamos a tornar face ao
nós. Preside em tudo isto um pressuposto
incómodo que subentende que a construção do eu é um processo frágil com que não se deve brincar.
Mo meio de tudo
isso, talvez me reste admitir, voltando ao caso da literatura e da escrita, que
em conjunto com as artes de palco não deixam de ser para mim o maior convite à
alteridade que nos seja possível viver numa só vida.
Quiçá seja daí que
me venha esta tendência em começar por dizer algo para terminar dizendo o seu
contrário.
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