Rescaldo de um serão tecnológico: hoje foi a noite em que explorei a minha nova
box da Iris; a tal que permite gravar
ou programar gravações de séries e afins... É suposto ser um incremento de
escolha e liberdade mas a verdade é que passei o serão a pré-formatar um
conjunto de filtros e preferências que
fazem de mim um míope cada vez mais exposto ao preconceito.
Este pequeno episódio trivial da vida de um
solteirão barbudo faz eco a algumas teorias transumanistas às quais tenho
andado sensível nestes últimos tempos.
Para os menos informados, o transumanismo ou pós humanismo consiste num
conjunto de teorias que advogam que a humanidade está votada a superar os
determinismos da biologia através da técnica; que a tecnologia será cada vez
mais uma parte integrante do ser humano e das suas possibilidades.
Se há pouco
mais de dez anos, ainda achávamos que o telemóvel era coisa de trolha
exibicionista, hoje já ninguém o dispensa: e digo isto, antes de evoluir para
cenários futuros, precisamente para deixar claro que, por mais valores que
possamos aqui defender, raros são aqueles que não estão expostos às
necessidades futuras que a tecnologia procurará inculcar em cada um de nós: as
promessas dos tecno profetas vão desde os apoios domiciliários a idosos
solitários – robot de companhia cujo exemplo mais emblemático é a Matilda – a chips subcutâneos que estão ligados aos demais gadgets do nosso quotidiano. Atenção, precisa de beber mais água ou
melhor ainda, aparece-lhe em casa uma ambulância do INEM depois do chip ter detectado um risco de AVC...
Parece-lhe um cenário de ficção científica,
não é?
Pois não, não é. É algo de bem real.
É aliás
essa a guerra que se travam as nações desenvolvidas na antecipação das patentes
do futuro; é também neste campo que se jogam os principais
desafios na Silicon Valley: aí mesmo onde se implantou a Universidade
da Singularidade - criada por Ray Kurzwell, guru do transumanismo – a dois
passos da sede da NASA e logo ao lado da da Google.
Sim, porque se estas teorias têm hoje tamanha pujança é porque têm por detrás
um poderosíssimo lobby financiado pelas dot.com,
ou seja por todos esses empresários que entendem que o mundo é informação. Uma visão hoje alargada a um projecto ultra
liberal de sociedade futura em que serão necessárias cada vez mais máquinas
para conseguir dar resposta à aceleração do tempo e ao aumento das solicitações de quem aspirar a esta sociedade dos que conseguem.
Este é aliás um processo que já se encontra
francamente adiantado. Uma questão: quem
detém mais informação sobre si?, a Google e o Facebook ou o Estado português?
Por detrás da resposta estão soluções de
numerização de dados na génese da modelização
tecnológica do Eu. As técnicas usadas passam precisamente pelo cruzamento de uma sucessão gigantesca de
algoritmos que o definem a Si, à semelhança das práticas que a Google usa para cada vez mais o identificar. Jamais aliás um Estado
seria autorizado a cercá-lo de tão perto.
É claro que este é um processo que está na
convergência de desafios políticos, éticos e científicos. Até porque um modelo
de sociedade tecnológica que visa um incremento constante de capacidades, traduz-se
necessariamente numa sociedade fracturada em duas partes bem distintas; de um
lado os que podem, do outro os que não podem. A relação que mantemos hoje face à tecnologia
ilustra desde já esta fronteira: os que vivem a vida através de representações
virtuais face aos que ainda conseguem vivê-la e apreciá-la in situ.
Termino, parafraseando a romancista e ensaísta
Isabelle Sorente, “o homem tornou-se o elo mais fraco da guerra
do futuro”. O homem ainda tem fome; tem
frio; envelhece.
Fica a eterna questão de saber se o homem
domina a tecnologia ou se a relação de força já está irreversivelmente
invertida.
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