Ontem cruzei-me com uma palavra nova. Percebi
logo que nos íamos dar bem. Foi-me
apresentada em francês.
Chama-se Aporétique.
É daquelas palavras meio esdrúxulas cujo lado
rebuscado me garante uma certa intimidade. Não é uma palavra na moda, tipo com
duas sílabas e vogais pelo meio.
Alguns acharão que estou a ser snob ao
valorizar este tipo de preciosismo; que a linguagem serve para ser entendido.
Pois eu responder-lhes-ei que as palavras também se sussurram e podem ter como
única função esculpir um prazer; refinar uma reflexão. E para mim, é o caso
desta nova amiga.
Aporétique, chamemo-la aqui aporética, surgiu-me no meio de uma análise ao Górgias
de Platão, um diálogo estranhamente moderno, diga-se de passagem. E fiquei
portanto a saber que este era um texto aporético, por não se concluir numa
qualquer verdade; por deixar em aberto ambas as teses ali em confronto. Desde logo, numa altura em que o discurso
político é hoje visto como braço armado da economia, achei que não querer
extrair verdades das palavras era uma atitude exemplar.
A aporética junta-se assim a uma pequena
galeria de palavras escondidas. Outra é a palavra subsumptivo, que vem do verbo
subsumir ainda na origem de subsumpção. É uma palavra caleidoscópica: ou seja,
um processo subsumptivo, equivale a abrir matrioskas;
a apresentar uma tese enumerando a substância da substância; o conceito do
conceito; o que na era do nano deveria fazer desta palavra uma senhora
palavra. Mas não é. É dura de mastigar.
Agora correndo o risco de fazer deste texto um
senhor texto impopular no reino do
pronto-a–vestir-pronto-a-comer-pronto-a-pensar cibernético autorizo-me a
extrapolar da palavra para o discurso; ou melhor, da palavra para a língua.
Descobri recentemente o Heinz Wismann, autor
de “Penser entre les langues”. Um
texto fantástico no qual elogia os benefícios do bilinguismo. Já agora, esta
tese defende que ao ter duas línguas maternas, cria-se uma consciência da
contingência das línguas; cria-se um espaço de liberdade entre as duas línguas
já que não existe um vínculo específico àquele signo. E é, segundo Wismann,
neste entre-dois que a liberdade se pode expandir. Quem aqui fala em línguas fala também em disciplinas. É entre os sistemas que se cria o pensamento.
“É preciso insurgir-se contra este nivelamento
mole do esperanto” , proclama Wismann concluindo que uma
língua é sempre uma invenção e nunca uma convenção. E tenho aqui uma excelente oportunidade de vos
voltar a apresentar a minha nova amiga: a palavra e a língua são aporéticas. É
preciso combater a procura de tradução funcional. O “pão” português não é o
“pain” francês nem o “bread” inglês. Os seus ingredientes são diferentes e a
linguagem tem de ser fiel a essas diferenças. É da justaposição das línguas que
nasce uma cultura em que o mundo fica mais rico.
Note-se, a esse respeito, que todas as duas semanas, um ancião derradeiro tradutor
de uma língua minoritária morre. Perspectiva-se que no final deste século,
somente metade dos atuais 6000 idiomas permanecerão vivos (1)
Eu sei que as particularidades linguísticas me foram ajudando a questionar algumas particularidades culturais.
Sempre me espantou, por exemplo, que a França, suposto país da prosa
amorosa, não dispusesse de uma tradução para a palavra beijo. Também acho graça ao facto da palavra
Liberdade ser em inglês dividida em Liberty
e em Freedom. No que toca ao
português, sempre achei que esta coisa da saudade não ter tradução era uma
fraude. Para mim saudade é melancolia e não creio que a saudade de um africano expatriado seja diferente da saudade de um português da diáspora. Tenho é notado com algum
alarmismo a facilidade com a qual batizamos em inglês uma série de negócios e
conceitos trendy. Como se o português
fosse uma língua pouco comercial; pouco vendável.
Já agora, para epilogar, recordo-me de há uns
anos, numa mesma semana, ter estado em Hong Kong, Macau e Hanói. Encontrei no
centro da primeira uma city financeira; no centro de Macau encontrei igrejas e
pracetas enquanto Hanoi reservava as suas avenidas mais largas a teatros e à câmara:
três heranças coloniais; três visões do mundo.
Não esqueçamos que a palavra esculpe ideias,
sonhos e sociedades.
(1) – “Ces mots qui meurent”, de Nicolas Evans
Sem comentários:
Enviar um comentário