Vim ontem do
Alentejo de carro. Deste vez, fiz o percurso todo de janela aberta; só mesmo
para acentuar aquela sensação que o carro me dá: de liberdade.
É engraçado como o
carro é, hoje em dia, o rei das coisas: é de todos os objectos aquele ao qual mais personalidade se atribui. Diga-se também que tudo é feito para nos
convencer que o mesmo é o prolongamento da personalidade do dono.
Recordo-me de, há uns
anos, ter tentado organizar um conjunto de festas que brincavam com esses
mesmos códigos: uma delas consistia na criação de um circulo de carros, cujos
auto-rádios estavam sintonizados a uma mesma frequência enquanto as luzes dos
carros serviam para iluminar o dance
floor, improvisado no centro o circulo.
A ideia ali era a de explorar a relação que o condutor dentro do seu
carro consegue desenvolver com quem está fora. Por norma, fora da carroçaria,
só estão entraves a ultrapassar; ali, a ideia era estar dentro do invertebrado
mas de porta aberta e num acto de partilha.
E porquê este devaneio acerca do carro?
Pois porque,
acontece-me algo de inquietante mas interessante face ao carro; algo em que
resolvi trabalhar. Mal o Henrique entra
dentro daquele habitáculo transforma-se num ser execrável: impaciente;
impulsivo e com uma capacidade infinita de atribuir defeitos ao mundo...
Admito
que se eu fosse o INE, naquele momento, uns bons 80 por cento dos meus
congéneres seriam pata-chocas.
Basicamente, ao
entrar no carro fico uma besta: descobri aliás uma palavra, este fim-de-semana,
que me vai acompanhar durante os próximos tempos: descobri que sou agarrado aos
meus instintos. Sou um tipo muito instintivo. Para o bem como para o mal. E noto
que o carro tem uma forte tendência a atiçar esse meu lado. Esta coisa de só
ter que carregar no pedal para ter ilusão de um poder ascendente; esta coisa
dos meus limites passarem da pele para a chapa.
E o facto de estar numa dança de poder com os meus congéneres, fazem da
condução automóvel uma baile de egos.
O estar no carro é
aliás uma metáfora do estar no mundo porque é aquela coisa híbrida que tanto é
um espaço privado como um espaço público. Daí que conseguir trabalhar alguma
atitudes de automobilista conduza seguramente a fazer de mim um cidadão mais
consciente e sobretudo um homem mais sereno.
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